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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Vítima de machismo - parte I


Texto publicado nas redes sociais por Suzane Jardim (29/11)
Meu amigo secreto achava que era absurdo uma garota aceitar tomar cervejas pagas por um homem e se recusar a transar com ele depois.
Foi o que a moça que nos acompanhava na madrugada do dia 30 de novembro de 2013 ousou fazer: aceitou o convite de ir tomar umas cervejas e ouvir música em um apartamento na Vila Mariana, assim como eu havia aceitado, mas não queria fazer sexo com o dono do apartamento.
Então, meu amigo secreto começou a ter um comportamento ofensivo e hostil com a moça em questão.
"Cala a boca, vagabunda", "Essa puta fala demais", etc.
Infelizmente, eu era a companhia do meu amigo secreto naquela noite e via esse comportamento agressivo e abusivo ir crescendo conforme a noite passava.
Até que tive nojo.
A situação chegou a um extremo onde não quis mais a companhia daquele cara.
Quando ele me chamou para irmos embora, minha resposta foi:
- Não. Não saio com machistinha escroto.
Ele me mandou repetir.
Eu o fiz.
E o resultado disso foi ter sido atirada de cabeça da janela do apartamento no quarto andar.
Dois anos se passaram.
E por mais que eu tente, as dores que sinto e que me acompanharão por toda a vida, não me deixam esquecer ou deixar de falar sobre.
Falo da dor física, mas não só.
Acordar do coma e descobrir que o rapaz registrou o caso como "queda acidental e possível tentativa de suicídio" apostando na minha morte.
Ter que, lá mesmo, na cama da UTI, lutar para que soubessem o que realmente aconteceu - mesmo com perfurações no pulmão, mesmo à base de doses de morfina, mesmo achando que eu poderia morrer a qualquer hora, mesmo sem saber se um dia eu voltaria a andar.
Meu medo era sair da UTI e ser mandada para uma clínica psiquiátrica. Ser afastada do meu filho e taxada como uma louca suicida incapaz de educar uma criança.
Consegui.
O caso se espalhou, fiz barulho e em poucas semanas o ‪#‎meuamigosecreto‬ deixou de ser secreto.
Seu nome completo, idade e outros dados, foram divulgados por diversos portais de notícias em todo o Brasil.
Fiz exatamente o que todo mundo que se incomodou com a campanha sugeriu:
"denuncia"
"não fica de indireta"
"vai atrás"
"só expor o caso sem nomes não adianta nada"
O resultado foram matérias como essa do Estadão, no melhor estilo "Gay pega gripe e culpa a homofobia".
Um assédio absurdo por parte da imprensa sensacionalista.
Comentários que ressaltavam o quanto eu mereci aquilo - afinal qualquer homem faria o mesmo com uma mulher tão feia.
O recebimento de mensagens de ódio nas redes sociais - coisas como "você não tem vergonha de encher a cara no meio de uma suruba em um apartamento e depois vir politizar a coisa? devia ter morrido, vagabunda"
Ver surgir entre colegas e vizinhos campanhas de apoio ao rapaz:
- Não acredite no que diz a mídia! Toda história tem dois lados! Ouçam o lado do cara!
Precisar ouvir que se eu me desse o respeito isso não aconteceria. Que se eu não fosse uma safada e estivesse em casa com meu filho estaria tudo bem. Que a culpa foi minha, que eu fui burra. Que homem é assim mesmo e que eu deveria saber disso.
Sensação de insegurança, impotência, humilhação - e tudo isso enquanto eu tinha que tentar explicar pro meu filho o porquê da mamãe estar toda machucada, sem andar e usando fraldas em cima de uma cama.
Hoje, o caso já é tratado como tentativa de homicídio - não há mais dúvidas e o inquérito está fechado.
O rapaz que tentou me matar,
não prestou socorro,
fez um boletim de ocorrência mentiroso,
não se apresentou quando foi intimado pela polícia
e ficou foragido por quase um ano após seu mandato de prisão ser decretado
conseguiu o direito de aguardar o julgamento - que pode ser daqui meses ou daqui anos - em liberdade.
Tem dias que eu me deito pra dormir e percebo que cansa sentir dor o tempo todo.
Cansa saber que eu preciso de fisioterapia permanente. Cansa saber que a cada ano eu vou perder minha mobilidade mais e mais e que as dores que sinto só irão aumentar. Cansa ter que pensar em algo rápido pra responder sempre que alguém me vê de bengala por aí e pergunta "nossa, mas tão jovem... o que foi que aconteceu?". Cansa ouvir "mas Deus é maravilhoso, isso aconteceu pra você aprender uma lição". Cansa ter que explicar, principalmente, o porquê de eu ter lutado tanto e tanto e o meu amigo secreto - LUIS HENRIQUE NOGUEIRA - ainda estar em liberdade.
Cansa subir no ônibus todo dia e ter pânico de talvez encontrá-lo.
Dois anos e sigo aqui,
como um exemplo involuntário de como funciona a justiça em casos de violência contra a mulher.
De como a mídia e a sociedade tratam a questão quando ela é de fato escancarada.
De como as vítimas são tratadas de um modo cruel enquanto seus agressores seguem impunes.
Então só digo: é necessário muita coragem pra expôr nossos casos, dar nomes aos nossos agressores, entender que não temos culpa quando há todo uma estrutura social montada para dizer o contrário.
Jamais julgarei aquelas que quiserem se privar disso.
Ainda hoje dói lembrar como não tive opção alguma de me privar de toda essa violência.
A todas vocês que tiveram essa coragem, obrigada.
Ver toda essa movimentação me faz pensar que esses dois anos de batalha e de dor talvez não tenham sido assim tão em vão.
E que apesar de eu ser essa garota "feia",
que provavelmente não presta pois foi "mãe aos 18 anos"
e que faz parte dessa "boa parte da mulherada que não se dá valor e respeito e por isso não pode se queixar":
Ainda mereço amor e respeito,
e não estou sozinha.

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