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segunda-feira, 6 de abril de 2015

Felícia

As pessoas sempre me perguntaram se eu era uma pessoa feliz e eu sempre respondia que feliz, só meu nome. A minha vida já começou de uma forma sofrida. Quando nasci, a minha mãe teve uma hemorragia e veio a óbito. O meu pai não me quis porque ele sempre acreditou que perdeu quem ele amava por minha causa.
Fui morar com os meus avós maternos numa vila bem interiorana. Quando fiz três anos, o meu avô morreu. A minha avó caiu numa depressão profunda com a perda dele e quatro anos mais tarde, deitada sob uma cama foi a vez dela.
Aprendi a sobreviver desde cedo. Nunca tive ninguém por mim. Sempre achei ser um estorno na vida das pessoas, há quem dizia que eu não era desse mundo e que todos os lugares que eu passava, levava a tristeza para as pessoas que me acolhiam. 
De início não dava importância, na realidade nem entendia. Até porque sempre amei as pessoas que de alguma forma tentaram cuidar de mim. Com a morte da minha avó, a minha tia me levou para morar com ela. Desde o dia que me mudei para lá, acabei me tornando a sua empregada. Cuidava da casa, fazia a comida, tomava conta dos meus primos. Não podia ir para a escola porque de acordo com minha tia, a escola não era para mim.
Aos 10 anos sofri o meu primeiro abuso. O meu tio, marido dela, adorava me dar banho, me mandava sentar no colo dele, me vestia e me colocava para dormir. No início, achei que ele gostava de mim, que tinha arrumado uma pessoa que se preocupava comigo, depois quando ele começou a falar que eu já estava me tornando uma mocinha, ele aproveitou numa noite enquanto dormia.
Da primeira vez, assustei e chorei muito. Das outras vezes, eu só queria que acabasse. Ele sempre falava que eu não podia falar nada com ninguém porque quem acreditaria numa criança? E se ele soubesse de alguma conversa minha, ele me prenderia e me deixaria sem nada. Tinha tanto medo dele que me submeti a isso durante quatro longos anos.
Aos 14 anos, a minha tia disse que eu já deveria trabalhar fora, afinal tudo tem preço e a vida era muito cara. Meu tio, logo se predispôs a arrumar um emprego numa casa de família. No dia certo de me mudar, antes deu acordar as minhas coisas já estavam arrumadas para ir embora. Foi ele quem me levou. Na realidade, nunca fui para casa nenhuma. Ele me levou para um bordel na cidade e me vendeu como se eu fosse mercadoria.
Comecei limpando a casa, mas durou poucos dias. Em pouco tempo já estava vestida, maquiada, perfumada e pronta para quem me quisesse. Vocês não fazem ideia do que passei. Não sei com quantos me deitei. Não tinha valor nenhum, ou melhor tinha valor, afinal eles pagavam para ficar comigo. Parece que uma coisa vai levando a outra. Não sei se é pelo vazio, pela fuga ou por não ser nada. 
Aos 18 anos não me reconhecia: bebia, fumava, não dormia e me sentia completamente doente. Só que adoecer não era para pessoas que nem eu. Se você não trabalha, não come. Então, por pior que estivesse tinha que estar sempre disponível. 
Aos 19 anos eu já estava tão definhada que eles me expulsaram de lá. Fui morar nas ruas. Sem forças, sem dinheiro, sem comida e com a saúde fragilizada, não me restou opções.

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